“Não te deixarei
jamais,
Pois tu és meu
amor
Não te
esquecerei enquanto viver
Não te trocarei
por nada,
Tu és meu
primeiro amor,
Pois minha
morada é uma canção!”
(Melodian – Mägo de Oz)
Shigatsu
Wa Kimi No Uso, que se poderia traduzir por A mentira que você me contou naquele mês de
abril, é um anime constando de 22 episódios e um OVA. Adaptação do mangá de
mesmo nome, concebido por Naoshi Arakawa, a trama gira em torno do jovem
pianista Arima Kousei que, incapacitado de ouvir o som do piano em virtude do
trauma deixado pela perda da mãe, redescobre a música como via de realização
pessoal, graças à intervenção de Miyazono Kaori, uma violinista que o faz
enxergar a música para além do rigor extremo e metódico da partitura.
Se fosse possível sintetizar a temática do referido
anime numa frase, me aventuraria a dizer que a melhor sinopse seria: a música
como a linguagem capaz de comunicar sentimentos e que não depende de palavras
ou símbolos para isso. Do início da série até o último episódio e também no OVA
– que trata dos eventos anteriores à instauração do trauma de Kousei – o
protagonista é levado numa jornada através da música, que irá mudar para sempre
a sua vida. Melhor seria dizer que não apenas Arima Kousei, mas cada um dos
personagens é envolvido nesse turbilhão de emoções. Até mesmo o telespectador é
convidado a rever conceitos acerca da música e, por meio dela, da vida e da
finitude. (Sim, esse é mais um anime falando de morte, perda e luto! E é
daqueles que te farão chorar até a desidratação, se os caros leitores deste
blog são afeitos à emoção como eu particularmente sou...) :’(
A fim de não expandir em demasia a análise do anime,
tentarei focar apenas o casal Kousei/Kaori. Um casal que, à semelhança de uma
centena de animes que já assisti (incluindo o corpus da minha dissertação), não “acontece” de fato. E é
justamente aí que está beleza trágica e cativante da trama de Naoshi Arakawa.
Sem mais delongas, vamos aos protagonistas
[trágicos][1]da
trama:
Arima
Kousei
Filho de Arima Saki, uma renomada pianista e de um
executivo que trabalha fora do Japão (na verdade, o anime acaba e o pai de
Kousei nunca dá as caras!), Arima Kousei é um prodígio ao piano. Com apenas
quatro anos de idade, participou de sua primeira competição de piano, deixando
a assistência boquiaberta com a sua performance, apesar de haver esbarrado no assento
logo no início, o que arrancou algumas boas risadas da plateia. A precisão
extrema alcançada por ele, graças a sua mãe e a Seto Hiroko – amiga de Saki
que, posteriormente, irá reassumir a função de professora de piano de Kousei e
ajudá-lo na travessia do luto – lhe valeram o apelido de “metrônomo humano”,
tamanha a fidelidade à partitura que ele mantinha durante a sua performance.
As coisas mudam drasticamente quando Saki desenvolve
uma doença degenerativa que a faz perder o movimento das pernas e que,
posteriormente, a leva à morte. A ideia de morrer e deixar o filho sozinho
passa a torturar a genitora de Kousei que, a seu turno, se torna extremamente
cruel para com o garoto. O pequeno Arima passa a ser cobrado de forma cada vez
mais tirânica pela mãe. O apogeu do intolerável se dá no último recital a que
ela comparece, quando espanca o filho com a bengala, acusando-o injustamente de
não respeitar a partitura.
Para Kousei, é a gota d’água. Apavorado com a
perspectiva de perder a mãe e nutrindo a esperança de que a música poderia
curá-la, ele assume a revolta e a indignação que silenciara por tanto tempo,
atirando-lhe em rosto que fizera tudo por ela e que gostaria que ela realmente
morresse. Pouco tempo depois, Saki falece e Kousei desenvolve um bloqueio
traumático com relação ao piano. Por mais que se esforce, o som lhe foge e ele
vê as notas sumirem da partitura. Como se tudo isto não bastasse, ele também
passa a enxergar a imagem da mãe a seu lado, exibindo um sorriso cruel, como se
fruísse de um deleite perverso pelo trauma que o atormenta. Curiosamente, a
imagem materna jamais revela o rosto por inteiro: os olhos, a assim chamada
“janela da alma” e que, nas narrativas de animes e mangás, é por onde se
evidenciam as emoções e intenções do personagem, sempre estão velados por uma
sombra, ou simplesmente não aparecem no rosto da imagem de Saki projetada por
Kousei.
As aparições da mãe de Kousei são sempre
assustadoras. Infundem medo ao personagem e até mesmo aos telespectadores.
Longe de parecer com a figura materna do protagonista, o “fantasma” mais se
assemelha a uma harpia ou a uma das Fúrias, tal a sua configuração de deidade
vingadora. Na verdade, a imagem que persegue Kousei é a materialização do
remorso que o consome. Um remorso que remete às últimas palavras ditas à mãe,
mas que remete também à sua incapacidade de elaborar esse luto materno. O
piano, na qualidade de significante-chave para essa relação traumática, é onde
o jovem Arima atualiza esse vazio da perda que se recusa a aceitar. Em última
instância, o “fantasma materno” que o persegue é o próprio Superego,
metamorfoseado na referência primeira da Lei – a mãe, que supria também a
ausência do pai de Kousei – demandando do garoto que ele afunde nesse oceano do
gozo materno, sufocando-o, roubando-lhe o desejo de seguir pela via da música,
ao ponto de impedi-lo de ouvir a si mesmo.
O corte capaz de reaproximar Kousei de si mesmo é
efetuado por duas pessoas. Miyazono Kaori e Seto Hiroko. A primeira o coage a
retornar ao piano, mesmo ele argumentando que não é capaz de tocar e deixando
clara a sua situação quando sucumbe ao trauma durante o acompanhamento em uma
apresentação. Quanto a Seto Hiroko, a melhor amiga de sua mãe e colega da
faculdade de Música, é como a tia de Kousei. Sendo a primeira pessoa a
estimular o garoto para o piano ao ponto de convencer Saki do seu talento,
Hiroko experimenta uma culpa silenciosa pelo acontecido. Após uma apresentação
na qual Kousei torna público o sofrimento psíquico que o atormenta, Seto se
dispõe a acompanhá-lo e o auxilia a se libertar da visão que ele construíra da
genitora a partir do trauma. Uma visão que o impossibilitava de enxergar a mãe
para além da imagem tirânica que dominou os seus últimos anos de vida e que
ele, em virtude do trauma, passou a considerar como sendo a única hipótese
possível para as memórias da genitora.
“A habilidade de não ouvir as notas pode ser um
dom.” Com estas palavras, Seto Hiroko lança a provocação capaz de fazer
periclitar o monólito gozoso em que Kousei se encontrava aprisionado.
Posteriormente, no 13º episódio do anime, ele decide se apresentar novamente
como acompanhamento de Kaori, depois da infinda relutância da mesma em
convencê-lo. Em virtude de
acontecimentos que serão tratados no tópico seguinte, a violinista não
comparece, mesmo assim Kousei executa a peça sozinho. Trata-se de Liebesleid ou, O Sofrimento do Amor, no arranjo de Rachmaninoff que,
“coincidentemente”, era música favorita de sua mãe.
O episódio em questão é um dos mais belos e
emocionantes do anime. À medida que executa a peça, Kousei percebe que, de
fato, o que parecia ser um trauma, era apenas o prelúdio para um dom. O dom de
converter as próprias emoções em acordes e com eles alcançar a plateia. Mas,
para acessar esse dom, Kousei precisaria cumprir uma tarefa a que vinha se
recusando por mais de dois anos: aceitar a morte da mãe e deixá-la partir. O
“fantasma materno” que ele criara, nada mais era do que uma tentativa de não
enxergar a partida da mãe e a obrigatoriedade de assumir as rédeas do próprio
destino que tal contingência lhe impusera. Ao final da apresentação, Arima
desaba nos braços de Hiroko e dá livre curso às lágrimas que reprimira por dois
longos e dolorosos anos.
A partir daí, Arima Kousei assumirá uma postura
totalmente diferente da de antes, pelo menos com relação à música. Contudo, a
ausência de Kaori na apresentação e a razão por trás desta mesma ausência o
conduzirão a uma nova e pungente confrontação da finitude, materializada
naquilo que mais pode apavorar um coração humano: a iminência de perder – novamente
– o seu objeto supremo de afeição.
Miyazono
Kaori
A heroína musicista da trama é uma garota de
personalidade assaz intensa, que busca deixar a sua marca em tudo que faz, como
se sentisse que o tempo lhe foge e que deve fazer algo para permanecer na
memória de quantos estejam ao seu redor. Ainda em tenra idade, Kaori teve seus
primeiros contatos com a música, mas foi apenas aos 4 anos, quando assistiu à
primeira apresentação de um garotinho de óculos chamado Arima Kousei, que
decidiu por de lado o piano e escolher o violino. A razão disto: tocar tendo Kousei como seu
acompanhamento.
A sua primeira aparição tem lugar no primeiro
episódio, quando ela tocava escaleta com algumas crianças no parque, no intuito
de atrair os pombos. É também o momento em que os dois personagens finalmente
se encontram, mas o encontro nada tem de romântico. Kaori acusa Kousei de
observá-la de forma lasciva e o espanca ferozmente, parando apenas quando
Tsubaki e Watari irrompem no local. Na ocasião, Kaori declara estar namorando
Watari, o melhor amigo de Kousei e também o maior mulherengo da turma!
Posteriormente, já ao final do anime, é revelado que tudo não passou de um
simulacro para que Miyazono pudesse se aproximar do seu ídolo de infância, por
quem nutria uma paixão tão intensa quanta a forma como vivia.
Embora seja exímia violinista e saiba muito bem
interpretar as partituras, Kaori faz questão de tocar como bem quer e entende. A
razão por trás desse espírito voluntarioso e indomável só começa a se tornar
clara quando do final do 13º episódio, o mesmo no qual Kousei consegue
finalmente “sepultar” a mãe através do piano. Kaori é portadora de uma doença
degenerativa que, à semelhança de Arima Saki, priva-a do movimento das pernas
e, a longo prazo, levá-la-á à morte.
É apenas a partir do 16º episódio que o anime revela
outros pormenores da doença que acomete a violinista, como, por exemplo, a cena
da sua queda em casa que resultou na posterior internação, ou ao final do 15º
episódio, quando Kaori tomba no corredor do hospital e esmurra as próprias
pernas em desespero, ordenando que elas obedeçam à sua vontade e a façam se
levantar:
A partir daí, o quadro clínico apresentará poucas
melhoras e recaídas cada vez mais críticas. Kaori ainda logra retornar à escola
e consegue partilhar de alguns momentos a sós com Kousei. Momentos nos quais
vai ficando cada vez mais evidente que cada reencontro é um ensaio para a
despedida. Para ela, vai se tornando cada vez mais difícil lidar com a
perspectiva de partir, ainda que haja logrado realizar o seu grande sonho de
tocar com o ídolo de infância e amor inconfessado. Para Kousei, que finalmente
lograra se desvencilhar do “fantasma materno”, se ergue mais uma vez a
tenebrosa ameaça de ser privado de quem ele mais ama, num cenário análogo ao da
morte da mãe: uma doença degenerativa que impede a musicista de fazer aquilo
que mais ama.
Kousei ainda
busca incentivar a companheira, por entre gestos atabalhoados que apenas
revelam a intensidade do sentimento que nutre por Kaori – e idem da parte da
violinista –, bem como do seu temor de novamente se afeiçoar a alguém e ver
este mesmo alguém lhe ser seqüestrado pela morte, pouco depois de partilharem,
por um curto espaço de tempo, da paixão pela música. A jovem Miyazono,
reconhecendo que o fim se aproxima e que não lhe resta senão viver com a máxima
intensidade os dias que antecedem o trespasse, decide aceitar o seu convite
para que ambos se apresentem. Para isto, decide submeter-se a uma cirurgia de
alto risco para tentar reaver os movimentos. E é justamente a partir daí que os
derradeiros acordes desta sinfonia começam a soar, rumo a um clímax tão intenso
quanto pungente.
O último ato: clímax e réquiem
“Você existe dentro de mim”. Esta frase
aparentemente tão simples e tão despretensiosa ilustra com uma profundidade
singular, tanto a natureza do vínculo que une os dois protagonistas, quanto diz
da natureza comum aos laços afetivos humanos. É absolutamente impossível nutrir
afeto por alguém, se este mesmo alguém não se inscreve em nosso íntimo, nos
refolhos de nossa alma, por assim dizer. E tal inscrição só ocorre de fato
quando nós, inconscientemente, elegemos alguém para ocupar esse lugar no
panteão do desejo, em virtude de sua identificação com o que nos seja mais
caro.
A frase anteriormente citada ilustra o turbilhão de
memórias e imagens que Kousei vislumbra quando da apresentação que ele realiza
no exato instante em que Kaori se encontra na sala de cirurgia. Depois de
conseguir proceder, por meio do piano, ao sepultamento do “fantasma materno”, o
jovem Arima terá de, pela segunda vez, fazer do instrumento a ponte entre Eros
e Thanatos; entre o desejo e a morte; entre o amor e a perda.
Ao iniciar a apresentação, Kousei
passa em revista todo(s) o(s) sentido(s) de que a música se fez portadora para
ele, desde a iniciação, nos idos da infância, passando pela perda da mãe; o
reencontro com Seto Hiroko e o seu retorno às raízes, até a chegada de Kaori à
sua vida, pondo fim à quietude mórbida em que se afundara, fazendo-o
redescobrir a sua condição de sujeito de desejo.
Verdade seja dita, essa sequência do
episódio final evoca justamente o momento em que a vida passa diante dos olhos
de alguém que está prestes a exalar o último alento. Tal configuração não
ocorre por acaso. Nas cenas seguintes, duas mortes distintas terão lugar, sendo
uma, real e a outra, metafórica Às imagens que surgem na retina espiritual de
Arima, se mesclam cenas da jovem Miyazono na cela de cirurgia. Por fim, as
imagens vão se sucedendo e se conjugando, até que o casal se reúne, uma última
vez, numa paisagem onírica, que vai sendo moldada de conformidade com o
compasso da melodia executada por ambos que, a seu turno, ilustra o resultado
do procedimento cirúrgico a que a jovem musicista se submetia naquele momento.
O clímax desse dueto é
particularmente pungente. As cintilações multicoloridas que caem como flocos de
neve ao longo da execução da peça, vão gradativamente mudando de cor, assim
como o céu sobre os dois musicistas vai adquirindo matizes mais sombrios, indicando
que Kaori Miyazono está em vias de deixar este mundo. O ritmo da melodia também
vai indicando isso de forma cada vez mais dramática. E o conjunto se torna
ainda mais dilacerante quando Kousei se dá conta do que está ocorrendo e clama
em desespero para que ela não o deixe. Esse clamor, no entanto, não se dá pela
verbalização. O pensamento brada, mas é a música que comunica o sentimento e
configura o ambiente ao redor, num crescendo de dor e de paixão que, sem que
percebamos vai nos arrastando para o centro desse turbilhão de emoções.
A partida de Kaori é, de longe, um
dos momentos mais belos e mais tristes do anime, seja no que diz respeito à
forma como ela sai de cena – se desvanecendo num turbilhão de pétalas luminosas
que irrompem de seu peito –, seja pelo simbolismo desta mesma cena. Para a
jovem violinista, a música deveria ser, acima de tudo, uma via de realização e,
para tal, estar presa a convenções e ao formalismo da partitura era algo
inconcebível. Ela sabia do pouco tempo que tinha para fruir intensamente de
tudo que a vida pudesse lhe oferecer e, por mais que isso lhe fosse imensamente
doloroso, também lhe era sumamente gratificante. A sua volúpia pela vida foi o
que conseguiu trazer de volta à superfície um Arima Kousei afundado nas profundezas
de um oceano da morte, onde seguia se punindo pelo acontecido à mãe e, desta
forma, se privando da possibilidade de perceber como a música o ajudava a lidar
com a sua própria dimensão afetiva.
A certeza inexorável da finitude, decretada de
forma tão abrupta para uma existência tão jovem, longe de destruir em Miyazono
o desejo de viver, aguçou-o ainda mais. A morte foi, para ela, sinônimo de vida
em plenitude. Uma plenitude que ela comunicou a Kousei com toda a intensidade
de que dispunha, contagiando-o, ainda que
contragosto, para que pudesse fazer as pazes com um de seus maiores
amores – a música – tornando se ela mesma, por extensão, mais um nome, talvez o
mais marcante de todos, desse amor que ele também sentia, mas que se privava de
sentir por medo de confrontar a dor da perda da mãe.
Em suma: Shigatsu Wa Kimi No Uso é um dos melhores tratados sobre finitude
em forma de anime, que já tive a oportunidade de assistir. A forma como ele
articula amor e perda; desejo e castração; trauma e retificação subjetiva,
alinhavando todo esse conteúdo através da forma mais primária de comunicação –
a música – é simplesmente única, pra não dizer arrebatadora. Apesar dos
[muitos!] spoilers aqui presentes, vale a pena assistir, sentir e tirar suas
próprias conclusões.
[1] Tsubaki e Watari,
respectivamente a melhor amiga de Kousei e o “namorado fake” de Kaori também
tomam parte no aspecto trágico do enredo. No entanto, como o foco desta análise
é a interação entre o casal de musicistas e o porquê dessa interação, me abstive
de detalhamentos mais profundos acerca dos dois personagens.